
Era 8h da manhã de um domingo. O sol escaldante do Acre ainda era muito tímido e a previsão do tempo não era nada animadora. Ainda assim, coloquei a mochila nas costas e embarquei em direção ao KM 36 da AC-90 Transacreana, na Zona Rural de Rio Branco. Foram mais de 60 minutos de viagem de carro até o início da estrada com acesso à comunidade indígena Huwã Karu. O restante do percurso foi feito a pé. Mas as chuvas típicas do inverno amazônico complicaram um pouco a situação. Com sacolas nos pés, foi preciso percorrer cerca de 1km de muita lama até ser recebida com música típica do povo.
No local, rodeado pela floresta, não havia espaço para barulho. A música de boas-vindas até parecia fazer parte natural do cenário, assim como o som das mais variadas aves que davam vida ao céu. O cheiro de terra molhada também era bastante marcante, assim como ar puro –raridade para a maior parte dos brasileiros, principalmente para moradores da capital acreana, que tem o pior índice de poluição do ar do Brasil.
A receptividade ficou por conta de Armando Henrique –nome em português dado a Kapu Shunti, de origem Huni Kuin–, que não esconde no olhar o orgulho de pertencer à comunidade indígena. Um orgulho que se mescla com o medo de quem já viu de perto o que as mudanças climáticas podem causar ao longo dos anos, principalmente àqueles que vivem às margens dos rios.
Aos 55 anos, Armando já viu intervenções consideráveis no meio ambiente. Quando era criança, foi ensinado a cuidar da floresta e a buscar a cura na medicina da ayahuasca. Com o passar do tempo, ele percebeu que as estações do ano, o verão e o inverno amazônico, foram ficando cada vez mais intensas. Às margens do Rio Breu, na fronteira entre Peru e Brasil, ele viu o calor e a chuva destruírem a subsistência dele e da família.
“As águas levaram todas as nossas criações de galinha, porco. Os barrancos quebraram e as casas foram levadas. Não conseguimos ajudar todo muito, foi muita dificuldade, muito sofrimento. Quando chove, o rio cobre tudo. Quando vaza, o barranco quebra e leva as bananas, as macaxeiras. Fica tudo apodrecido”, relembra o líder da comunidade, que embarga a voz ao citar todas as perdas de seu povo.
“Já perdemos muitas coisas. O rio alagou tudo. Perdemos até gente. Criança teve que escapar, atravessar às pressas. As águas levaram as criações, quebraram os barrancos e levaram as casas. Não conseguimos ajudar todo mundo. Foi muita dificuldade, muito sofrimento” — Armando Henrique (Kapu Shunti)
A lembrança mais viva de Armando é a cheia histórica dos rios do Acre em 2023, quando as aldeias indígenas foram as mais prejudicadas. Segundo o governo do Estado, naquele ano, 19 das 22 cidades acreanas entraram em situação de emergência e pelo menos 23 comunidades indígenas do interior foram afetadas, entre elas, as do município de Jordão, onde ele morava com a família.
Com a destruição, só restou uma solução: mudança de endereço. Após seis dias de viagem de barco, Armando e a família chegaram ao Centro Huwã Karu, com objetivo de fazer dali o seu novo lar.
“Na época de criança, tudo era plantado. As hortas, os legumes… Nunca acontecia isso. Era tudo certinho. Quando fui crescendo, já mais velho, comecei a ver o rio levar tudo. Tudo o que estava na beira do rio, ele levava. Passei por muitas dificuldades. Tinha vezes em que levava até minhas redes. Por causa dessas mudanças todas, a gente precisou vir pra cá”, explica.
“Tudo vem das árvores. Nós consumimos muito da floresta, ela é imensa e sagrada. Ela faz parte da cultura indígena. Mas hoje temos muitas dificuldades na floresta, nas áreas de fronteira. Quando estamos mais perto da cidade, conseguimos plantar, colher o alimento, cuidar da nossa vida para viver com saúde e paz”, completa.
‘Chegou a faltar água e comida’

A destruição causada pelas enchentes há dois anos também segue viva na memória de Jocilene Serena Henrique –também chamada de Mukatxani–, de 24 anos, sobrinha de Armando.
“Quando eu era criança, era mais frio. Hoje em dia, o clima está mudando. Acho que está muito quente. Em 2023, teve uma enchente muito forte. O rio lá é pequeno, e choveu demais. O igarapé transbordou e o rio encheu muito. Levou as bananas, macaxeira, todas as frutas que estavam perto do rio. Algumas casas também foram inundadas e tudo foi coberto. Agora, as pessoas estão tentando produzir novamente e estão pedindo ajuda para replantar.”
Assim como o tio, ela tem percebido as consequências maldosas das mudanças climáticas na rotina do povo. Jocilene, que tem marido e filho, decidiu acompanhar Armando em sua nova vida mais próxima da zona urbana.
“Muitas queimadas. O rio estava secando, e o sol estava muito quente. As pessoas não conseguiam mais beber a água. O igarapé estava seco. Quando a gente pegava água e deixava em alguma panela, ficava com aquele pó, aquela sujeira. Chegou a faltar comida também, porque a chuva levou as plantações”, relata ela, que exerce o papel tradicional da mulher na cultura Huni Kuin, que inclui artesanato, pinturas, cuidados com a cozinha e com as plantações, além de fortalecer a conexão com a floresta.
O novo lar da família de Armando foi idealizado pelo líder indígena Mapu Huni Kuin. Na linguagem do povo Huni Kuin, “Huwã Karu” significa “o detentor do conhecimento das plantas medicinais”. O local nasceu com o objetivo principal de resgatar famílias em situação de vulnerabilidade social e preservar a cultura do povo por meio do idioma, rezas, danças e cânticos.
Resgate das tradições e suporte social
Quando Mapu Huni Kuin chegou à zona urbana em 2015, ele se deparou com uma triste realidade de seu povo, em vulnerabilidade social. “Vi muitas crianças e anciãs pedindo dinheiro no semáforo, muitos jovens se envolvendo no álcool, nas drogas. Isso me mostrou que a nossa imagem para a sociedade estava muito ruim e nós, como liderança, temos a responsabilidade pelo nosso povo.”
O líder indígena, que também é cantor, compositor e ator, começou a desenvolver o projeto do Centro Huwã Karu com objetivo de fortalecer a identidade do povo Huni Kuin, além de criar um lugar com capacitações, formações, cursos, oficinas, intercâmbio e conferências, onde o papel da mulher também é de empoderamento.
“Para podermos empoderar nosso próprio povo com essa questão da agricultura familiar, ecológica, regenerativa, ensinar as crianças a voltar a falar a nossa língua, a cantar as nossas rezas, a comer nossas comidas típicas, a brincar, a se pintar. O objetivo principal do nosso projeto é de poder um dia tirar as famílias que estão nessa situação de vulnerabilidade social na cidade e devolver pra floresta, para que eles possam ter uma vida de qualidade melhor”, explica.
Aos 37 anos, Mapu Huni Kuni tem se destacado como uma forte liderança indígena pelo mundo. Ele já viajou mais de 20 países levando os ensinamentos e a cultura de seu povo. Além de cultivar uma relação de proximidade com o DJ Alok e de parceria com o Instituto Alok, Mapu também atuou, em 2023, na novela Terra e Paixão, da Rede Globo.
“Por que essas mudanças estão causando um impacto nas nossas vidas? Porque os rios estão secando, ficando quentes, os peixes estão morrendo, são os recursos naturais que a gente tem e é disso que a gente sobrevive. Isso, com certeza, está trazendo um grande impacto tanto na nossa vida quanto nos territórios, na floresta, nos rios, nas nascentes” — Mapu Huni Kuni
De acordo com o líder indígena, as próximas gerações pagarão um preço muito alto caso nada seja feito. “A gente se preocupa muito e a nossa mensagem é que nós temos que plantar, reflorestar, criar planos de gestão territorial e ambiental, cuidar da fauna e flora, para que a gente possa equilibrar o planeta e que a gente possa deixar um mundo mais sustentável, saudável, para que as futuras gerações possam ter condição de sobreviver.”

Como funciona o Centro Huwã Karu Yuxibu
O Centro Huwã Karu Yuxibu é aberto ao público aos domingos, das 9h às 16h, mediante reserva. No local, os visitantes podem desfrutar da deliciosa comida plantada, colhida e preparada pelo restaurante Piti Kuin.
Na entrada, fomos recebidos com bananas maduras adocicadas naturalmente; para o almoço, um peixe de rio (tambaqui) assado na brasa com folha de bananeira, acompanhado com suco de cupuaçu, mingau de banana e açaí. Há opções vegetarianas.
O Piti Kuin se descreve como o primeiro restaurante indígena do Acre. O público interessado também pode desfrutar de um day use, com direito à culinária, apresentações musicais e pinturas corporais. A cada semestre, Mapu Huni Kuin e os moradores do Huwã Karu realizam vivências espirituais com cerca de dez dias de imersão na cultura Huni Kuin.
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