
“Amigo, sou o pastor Arnaldo Barros”, o líder da acreana Igreja Geração Eleita se apresenta antes de anunciar uma missão para a câmera do celular. “Vamos desligar um jovem de uma certa facção, que ele tá baleado.”
Chegam a uma casa. Agora é a vez de resgatar um homem que “tá de pulseira”, diz Barros, em referência à tornozeleira eletrônica, que ganha destaque na gravação.
O convertido diz que vai cuidar da saúde e do filho. Endereça um recado aos antigos companheiros do crime: “Agradecendo a compreensão de todos vocês que entendem meu lado”.
“Agora ele vai estar congregando na igreja”, emenda Barros. E assim conclui o que, nas suas contas, já somam mais de 5.000 “desligamentos” que conduziu. É como ele define homens e mulheres que, sob sua batuta pastoral, abandonaram facções pela via da conversão evangélica.
Arnaldo Barros, 56, lidera o projeto Paz no Acre, que envolve usar a igreja para justificar, perante os chefões do tráfico, o afastamento dessa rotina infratora. “Quando chego para o cara e tiro ele do crime, ele me passa o número dos superiores dele, e eu mando o vídeo.”
Muitas organizações criminosas têm estatutos próprios que permitem a defecção de integrantes que passam a levar uma vida religiosa. Em geral evangélica.
Ele conversa com a Folha de S.Paulo por telefone, enquanto faz musculação na academia. “Um, dois, três”, conta o número da série de exercícios para, na sequência, discorrer sobre os milhares de desligamentos que diz ter promovido em seu estado. O Acre tem intensa atividade criminal por conta da fronteira com países vizinhos, ponto de escoamento para drogas.
Alguns dos vídeos captados por Barros vão parar nas redes sociais. Ex-vereador em Rio Branco pelo Podemos, com mandato de 2021 a 2024 e sem conseguir se reeleger, Barros tem cerca de 4.400 seguidores no Instagram, seu principal perfil digital.
Ele diz que a publicação dos depoimentos de ex-criminosos gera um impacto nem sempre positivo. Mas sempre pede permissão para divulgar as gravações. Tem quem não tope, e tudo bem, afirma. Dos que aceitam, “alguns perderam empregos, outros a família nem sabia que o cara era do crime, foi um choque.”
Nos últimos cinco anos, diz, construiu uma família e conquistou uma habilitação de moto. “Deus tem derramado bênção transbordante sobre a minha vida.
Autor de “A Fé e o Fuzil – Crime e Religião no Brasil do Século XXI” e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Bruno Paes Manso diz que a entrada na igreja “é a única porta de saída” do tráfico, até porque muitos dos que conseguem envelhecer na carreira criminal acabam entendendo que tomaram uma decisão equivocada ingressando nela. “Você abandona seus laços afetivos mais importantes com esposa, filho, irmãos, mãe, e para viver na correria uma trajetória sofrida e vazia.”
Por isso, costumam respeitar quem os troca pela caminhada cristã, muito presente nas periferias.
Manso vê como natural a divulgação de histórias de convertidos. “Inclusive teve uma época, na Liberdade [região central de São Paulo], que você tinha uma loja de CDs com testemunhos de conversão. Eram vendidos por gravadoras pequenas, passados em rádios e nas próprias igrejas. Com a rede social isso ganha uma outra dimensão.”
Não que essa rota de fuga do tráfico funcione sempre. Para Christina Vital, que coordena o Laboratório de Estudos Socio-Antropológicos em Política, Arte e Religião na UFF (Universidade Federal Fluminense), há certa desconfiança, entre pares da ilegalidade, sobre a onda de convertidos.
“Se duas décadas atrás isso marcava uma divisão muito forte entre universos morais, o que a gente vê acontecendo agora é uma dúvida sobre se ocorrerá uma mudança radical na pessoa”, diz Vital, autora de “Oração de Traficante – Uma Etnografia”.
“Antes a conversão era chamada um novo nascimento.” Mas a expansão da cultura pentecostal no Brasil envolve a rotinização dessa religião”, daí um pé atrás se o sujeito de fato “nasceu de novo”, para usar uma linguagem tipicamente evangélica, ou se é fachada, e ele continua representando um risco para rivais. Um futuro deixado na mão de Deus.
Informações Jornal Folha de São Paulo
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